O CHICOTE

O CHICOTE DE LÍNGUA é um núcleo de pesquisa em mito e narrativa que utiliza da literatura oral através das lendas e contos populares da cultura brasileira como um meio de construção de uma relação poética com o espectador-criança que vive dentro de cada um, através de um caminho traçado pela nossa memória cultural e ancestral. Reconhecer nas histórias contadas através dos tempos aquilo que é indizível pela racionalidade é uma  jornada de encontro ao mito. Segundo Everardo Rocha, 

O mito é uma narrativa. É um discurso, uma fala. É uma forma de as sociedades espelharem suas contradições, exprimirem seus paradoxos, dúvidas e inquietações. Pode ser visto como uma possibilidade de se refletir sobre a existência, o cosmos, as situações de "estar no mundo" ou as relações sociais.
Mas, o mito é também um fenômeno de difícil definição. Por trás dessa palavra pode estar contida toda uma constelação, uma gama versificada de ideias. O mito faz parte daquele conjunto de fenômenos cujo sentido é difuso, pouco nítido múltiplo.¹

Nesse sentido, a escolha de uma história a ser contada parte do pressuposto da identificação do narrador com a narrativa. É preciso que o mito viva dentro de quem o está contando. Uma boa história é aquela que fala de mim. A ideia de uma história conter um mito que nos diga respeito é o caminho para a apropriação da narrativa, e consequentemente, para a sua evocação dentro do outro. O mito pessoal é algo que se origina nas profundezas de cada ser levando em consideração o contexto cultural ao qual se está inserido. Nós criamos mitos baseados em fontes de informação que se originam dentro e fora de cada individuo, vivendo de acordo com estes mitos.
A arte de contar histórias é um meio de conexão com estas mitologias. A experiência oral da narrativa é um meio de mergulhar na experiência mítica da vida. Atualmente, a esquizofrenica velocidade da vida empobreceu a relação presencial com a palavra oral. Muitos meios dão conta de mediar a relação entre indíviduos de forma a encurtar as distâncias e o tempo. Nesse sentido, encontrar o outro através da narrativa oral é um meio de estabelecer um encontro consigo mesmo num exercício com a propria imaginação e com todos os seres e paisagens que habitam a vida interior de cada um.
A escolha pela literatura popular parte do pressuposto que ela é fruto de uma construção coletiva que se dá através dos tempos.

Os contos tradicionais, cuja origem parece encontrar-se nos mitos primitivos, que por muitos séculos orientaram os homens em sua busca  de conhecimento do cosmo e de si mesmos, não são obra de um só autor. Resultam da produção coletiva de um povo que os cria a partir das representações de seu imaginário coletivo e, ao mesmo tempo, encontra neles o alimento para nutrir esse mesmo imaginário. ²

Nas culturas orais o aprendizado é algo que privilegia a relação entre os indivíduos, através do armazenamento de informações ao longo dos tempos. Nós vivemos numa educação pautada pela escrita e ansiamos por novidades, mas para o homem da cultura oral o prazer não está na novidade, a repetição é um meio de apropriação da narrativa, e consequentemente, o auto-conhecimento é algo vivenciado através da palavra compartilhada sempre que repetida. A palavra contada, nesse sentido, é uma evocação de simbolos, signos, gestos, imagens, sons, sentido. Um detonador de sensações. Um chicote que chicoteia o ar lançado nas profundezas de cada ser a possibilidade de recriar a vida através da fabulação.

¹ ROCHA, Everardo. O QUE É MITO. São Paulo, Brasiliense, , 2001.
² MATOS, Gislayne Avelar. SORSY, Inno. O OFÍCIO DO CONTADOR DE HISTÓRIAS. São Paulo, Martins Fontes, 2005.   

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